Era uma vez…as levadas

Os canais que transportam água pela ilha da Madeira, imortalizados como ‘levadas’, são tema recorrente na literatura e na fotografia.

As sugestões que constam deste artigo devem servir de inspiração para o dia em que forem retiradas as restrições à liberdade de circulação. Para já colabore com as autoridades. Fique em casa! Ajuda o Mundo a vencer a Covid-19.

 

Explorar os trilhos das levadas, seguindo os antigos caminhos da água construídos pelo Homem, é uma das atividades da ilha da Madeira que melhor expressa a simbiose entre os turistas e os residentes. Ali não há distinção, não existem barreiras, apenas um objetivo: aproveitar da melhor maneira possível o que de melhor a natureza tem, a sua tranquilidade.


Ao caminhar, é habitual cumprimentar quem por nós passa, seja quem vai em sentido contrário, seja quem, num passo mais apressado, segue na mesma direção. Mas há também quem esteja parado, aproveitando cada centímetro do que o rodeia.  

A flora e a fauna são motivo de atração. Fazer uma pausa durante a caminhada para, com o auxílio de uma objetiva, captar os momentos mais peculiares faz parte da “tradição” de quem se aventura. Amadores misturam-se com os profissionais na procura da foto perfeita, seja do simples correr da água, seja de um saltitante tentilhão que acaba de parar em cima dos ramos de um barbusano.

Nos percursos pedestres recomendados na ilha da Madeira aparecem dez levadas referenciadas. A do Barreiro, a do Moinho, a do Caldeirão Verde, a do Furado, a dos Cedros, a da Fajã dos Rodrigues, a do Rei, a da Azenha e as das 25 Fontes e do Risco, ambas com início na zona do Rabaçal. Essas últimas, localizadas no concelho da Calheta, são das mais fotografadas e das mais visitadas anualmente, muito pelo espetáculo que as suas quedas de água proporcionam.

A beleza dos canais, associada ao sossego, longe do frenesim da cidade e do burburinho do comércio, elevam as levadas a algo de místico, poético. É pois normal que tenham servido de inspiração a poetas e romancistas. Tanto aos que nasceram na ilha, como àqueles que por ela em algum momento das suas vidas passaram, curiosos por descobrir o caminho da água. 

Na altura da sua construção, a principal função das levadas era de transportar água de zonas onde é abundante para outras onde existe em menor quantidade, aproveitando a capacidade de captação da precipitação por parte da floresta. A água tanto era utilizada para a irrigação, como para o consumo. 



Entre os ziguezagues dos percursos, por vezes, quem anda pelas levadas deixa de poder seguir o seu rumo. Ferreira de Castro (1898-1974), jornalista e escritor, na sua obra Eternidade, chega a questionar o destino dessas “cordas líquidas” que em determinado momento desaparecem, descrevendo depois o que acontece.

“– Para onde vai esta água? – Para os campos –, respondeu Juvenal. E explicou-lhes que toda a ilha estava cortada por essas cordas líquidas, que rabiavam ao longo das serras, por entre as matas sussurrantes, furando as rochas, atravessando as montanhas, saltando precipícios abissais, outrora entre duas tábuas de til, formando calha, hoje em aquedutos de boa pedra, que a humidade tornara limosa e escura.”

O escritor madeirense Alberto Artur Sarmento (1878-1953) também descreve de forma lírica as funções dos canais, essas “artérias, que do coração das ribeiras vão irrigar todas as partes deste corpo rochoso, onde uma nesga de terra se sustenta apoiada num muro de pedra solta”.

Os textos inspirados ou com referências às levadas multiplicam-se ao longo dos últimos séculos. A editora Imprensa Académica lançou uma antologia onde reúne alguma dessa literatura, a obra “Levadas da Madeira, uma Antologia Literária”.

Contos, poemas, cartas, diários, de tudo um pouco. A pluralidade de formas textuais com referências às levadas da Madeira impressiona. Os textos reunidos, nos nove capítulos, foram selecionados ao longo dos últimos anos por Thierry Proença dos Santos, professor universitário. 

A antologia não é apenas para os amantes da literatura. É também para os apreciadores das levadas, para os que sentem curiosidade em relação ao trabalho desenvolvido entre o homem e a natureza, entre a dificuldade na construção e a realização de uma obra peculiar, que hoje faz as delícias entre os milhares de caminheiros.

No total são 33 os textos, de vários autores, presentes na obra. Mas ali não só as palavras contam histórias. A antologia é tão literária quanto fotográfica e as 45 imagens que Francisco Correia captou nas levadas madeirenses falam por si. Ele é um dos “tais”, que interrompe o percurso dos caminheiros apressados, enquanto procura a foto perfeita. 

A fotografia tem mesmo esse poder, o de abrandar, de parar tudo num só momento. Para Francisco Correia, isso ilustra bem a magia da fotografia, descrevendo-a como “uma maneira de contar uma história”, descrita “só com uma imagem”.  

O objetivo da antologia é “valorizar o discurso literário sobre as levadas da ilha da Madeira, dar a observar as suas representações em textos de intenção estética, suscitar a reflexão sobre as relações entre o imaginário, o poético e o real”, refere Thierry Proença dos Santos. 

Seja para servir de inspiração para um poema, seja para tirar a fotografia perfeita, caminhar pelas levadas é uma experiência única onde o imaginário confunde-se com o real, trazendo um pouco de poesia às vidas atarefadas dos caminheiros. Aguça o apetite por um dos maiores tesouros da Ilha da Madeira, a sua natureza. 

 

Artigo originalmente publicado em 2017.