O jornalista Luís Antunes, especialista em vinhos, olha para o Vinho Madeira e para a sua história e fama mundial.
A ilha da Madeira é uma espécie de “Novo Mundo” português, aliás, um “Novo Mundo” tout court, já que a sua descoberta, em 1419, marca o princípio do sucesso da expansão portuguesa, e depois espanhola, que haveria de definir os actuais mapas do planeta. Sendo que em Portugal já se fazia vinho há tantos anos, acaba por ser estranho que algumas das páginas mais antigas escritas sobre vinho acabem por se encontrar neste território.
A expansão marítima levava consigo varas de videiras, aliás, levaria sempre, já que era para a grandeza de “Deus Senhor” que os navios iam sempre mais longe, e as liturgias católicas exigem vinho para transformar no sangue de Cristo. Ou seja, onde ia a fé ia a videira, e neste novíssimo novo mundo, já em 1461, poucos anos depois da maciça destruição de árvores (a madeira que dá nome à ilha) para criar terrenos agrícolas, já há registos de exportações de vinho feito na Madeira.
As culturas principais na nova Madeira agrícola eram o açúcar, trazido da Sicília, o trigo, e a vinha, tendo especial destaque o sucesso da casta Malvasia Cândida, trazida de Candia (hoje Heraklion, Creta). Muitas outras culturas foram introduzidas, e mantêm-se até hoje, aproveitando as escassas terras agrícolas com recurso a socalcos, localmente chamados de poios. As encostas inclinadas por vezes sofrem desabamentos gerando outro tipo de terreno muito comum na ilha, as fajãs, tradicionalmente um pouco mais planas, mas sujeitas muitas vezes a hecatombes devido às fortes chuvas.
A Madeira situa-se ao largo da costa ocidental africana, e nesta latitude os solos basálticos são férteis, e ainda mais férteis depois das sucessivas queimas de madeira para desbravar o terreno. Assim, as produções chegam a alcançar os 200hl por hectare. Para comparação, uma vinha velha do Douro pode produzir cerca de 25hl/ha. Mesmo assim, não há muita produção de vinho na ilha, já que o total de área de vinha chega apenas aos 1700 hectares, divididos em 14000 parcelas. É frequentes as uvas terem um amadurecimento moderado, com níveis de álcool provável a rondar os 8 a 10 graus alcoólicos. Naturalmente, os níveis de acidez são bastante elevados.
O vinho da Madeira não seria o que é hoje se não fosse a exportação. Como a Madeira era um porto estratégico para a navegação do Atlântico, o transporte de vinhos começou logo desde o século XV. Desde o século XVII que os tratados comerciais beneficiavam a exportação de vinho Madeira para as colónias, o que permitiu construir uma relação especial com as elites norte-americanas. Foi com vinho da Madeira que se brindou a assinatura da declaração da independência dos Estados Unidos da América, e Thomas Jefferson, tal como outros fundadores, era grande apreciador. Tal como no vinho do Porto, optou-se pela adição de álcool para ajudar a estabilizar os vinhos para as exigentes viagens. Descobriu-se então que os vinhos que atravessavam o Equador e regressavam eram os preferidos. Chamados “ vinhos de roda”, sofriam agitação, evaporação, e dias seguidos de muito calor, o que provocava concentração e algum amaciamento. Para simular esse processo, os vinhos começaram a ser armazenados nos sótãos das casas, onde o efeito de estufa causava uma transformação similar à da viagem.
Já no século XVIII, a feitura do vinho foi normalizada, com dois processos ainda hoje usados: a adição de álcool (antes aguardente de cana de açúcar, hoje álcool de origem vínica a 96%), e a estufagem, simulando e acelerando as viagens e os sótãos. Como resultado final, os vinhos têm entre 17% e 22% de álcool, e uma quantidade de açúcar residual que pode variar de 0 a cerca de 150g por litro No século XIX houve duas grandes crises no vinho Madeira: uma severa praga de oídio, um fungo com propagação ajudada pelo clima húmido, e logo depois a filoxera, um insecto que se agarra às raízes das videiras. Entre uma e outra, 90% dos vinhedos da ilha foram dizimados, e durante longas décadas os stocks de vinhos antigos foram sendo consumidos e não repostos, ao mesmo tempo que os preços aumentavam significativamente. Tudo isto provocou um arrefecimento dos mercados de além-mar. Para agravar mais a situação, quando a agricultura resolveu finalmente os seus problemas, com tratamentos de enxofre para o oídio e importação de porta-enxertos de vitis rupestris (espécie americana imune à filoxera), acontecimentos políticos fecharam dois importantes mercados: a revolução russa e a lei seca na América.
Durante o século XX, com poucas excepções, a indústria do vinho Madeira sobreviveu com produtos de pouca qualidade, e deixou-se associar com utilizações culinárias, menorizantes, dos seus vinhos. Mas o vinho Madeira haveria de dar a volta por cima. Muito por mérito próprio, e dos produtores que teimosamente persistiram em apontar para a qualidade máxima, defendendo as castas mais emblemáticas e o envelhecimento em canteiro, nos velhos sótãos. Devido ao seu estilo de vinificação e envelhecimento, o vinho Madeira é quase indestrutível, sendo vulgar encontrar vinhos do século XVIII ainda de muito boa saúde. Os vinhos mais banais, feitos de Tinta Negra Mole, podem ser vendidos ao fim de três anos, ou de cinco anos, dividem-se em categorias por graus de doçura, e podem inclusive ser coloridos e adoçados com caramelo. Mas as velhas castas da Madeira, que representam talvez apenas 10% do encepamento, tornaram-se lendárias, e cada uma delas foi associada a um tipo de vinho.
A casta rainha é a Malvasia (Cândida, embora uma variante chamada de S. Jorge dê vinhos algo diferentes), que produz os vinhos mais doces de todos, texturados, ricos, com nuances de caramelo e iodo. Logo depois o Boal, ou Boal Cachudo (para aumentar a confusão, exactamente a casta conhecida no Douro por Malvasia Fina). O Boal faz um vinho ligeiramente mais seco do que a Malvasia, escuro, com sabores a passas, e de textura rica e sedosa. O Verdelho dá um vinho ainda mais seco, com notas fumadas e muita precisão. A casta que faz o vinho mais seco de todos é o Sercial, fermentado quase até perder todo o açúcar, tem uma acidez afiada e notas de amêndoas tostadas.
Se todos estes vinhos (castas associadas indelevelmente a estilos) são mais ou menos doces, todos têm também uma incrível acidez, e é desta dança acidez-doçura que vem o encanto do vinho Madeira. Aliás, estes vinhos devem ser de preferência guardados na vertical, já que a grande acidez pode corroer a rolha. O equilíbrio é fundamental, como em todos os vinhos, e a idade traz a concentração e o longo fim de boca que fazem de cada inalação e cada pequeno sorvo uma fonte de complexidade e prazer. Há ainda outras castas, algumas famosas, que caíram em desuso, mas que os viticultores mais dedicados fazem por recuperar para o património vetusto do vinho Madeira. São o Bastardo, o Terrantez e o Moscatel. Os vinhos das castas nobres começam no patamar dos 3 e 5 anos, depois há reservas com 10 ou 15 anos. Os Colheitas (Harvest) são feitos de uvas de uma única vindima, e os Frasqueiras (Vintage) envelhecem pelo menos 20 anos. Os vinhos de Tinta Negra Mole são classificados pelo grau de doçura: seco, meio-seco, meio-doce e doce.
Na Madeira pode ainda usar-se o método de Solera para envelhecer os vinhos: uma pirâmide de cascos é atestada com vinhos novos por cima, e engarrafada a começar pelos cascos de baixo. A Solera na Madeira tem regras rígidas, e produz muitas vezes vinhos de extraordinária qualidade e envelhecimento de muitas décadas. Recentemente, uma nova geração de produtores e enólogos veio defender a Tinta Negra Mole como capaz de produzir vinhos de grande qualidade, desde que essa qualidade fosse iniciada logo na vinha, com rendimentos controlados e depois vinificação cuidada.
Outros produtores procuraram fugir da rigidez do sistema de certificação do vinho Madeira, e plantaram castas internacionais e outras portuguesas do continente para produzir vinhos secos, de consumo, sob a designação DOP Madeirense e IGP Terras Madeirenses. Alguns resultados são interessantes, mas parece ainda haver um longo caminho a percorrer para alcançar a fantástica nobreza do Vinho Madeira. A longevidade épica do Vinho Madeira, e a sua imunidade aos maus-tratos mais frequentes dos colecionadores (exposição ao calor, à luz, etc.) fazem destas garrafas objectos muito apetecíveis para comprar em ocasiões onde a proveniência e guarda dos vinhos não é completamente conhecida e certificada.
Esquecidos em restaurantes, garrafeiras, despensas de familiares, ou em leilões, podem estar jóias de excelsa qualidade, que oferecerão ao seu descobridor grande prazer, e uma experiência quase mística, já que é frequente encontrar garrafas do século XIX e mesmo XVIII em bom estado. Mesmo antigos vinhos de lavrador podem ser comprados com pouco risco. Mas as grandes marcas de hoje são a Barbeito, Henriques&Henriques, D’Oliveiras, Justino’s, e a Madeira Wine Company, incluindo as marcas Blandy’s, Leacock’s e Cossart Gordon. Como outros vinhos fortificados, o Madeira mostra-se melhor se servido refrescado, entre os 12ºC e os 14ºC.
O Madeira é um vinho excepcionalmente gastronómico, podendo acompanhar quer pratos salgados quer sobremesas. A procura de ligações gastronómicas para este vinho é um dos seus especiais encantos, já que as suas qualidades de acidez e doçura geram muitas vezes harmonias surpreendentes. Claro, que como tantos outros vinhos de meditação, um grande Madeira pode ser tomado a solo, sem acompanhamento, mas de preferência em boa companhia.