No nariz: O aroma do vinho

Um estudo realizado por investigadores olfativos registou um bilião de odores identificados pelo ser humano, mas essa capacidade aplicada à indústria dos vinhos abre uma verdadeira caixa de pandora.

 

O conto infantil O Capuchinho Vermelho, cuja antiguidade remonta ao século XIV, tem uma parte com o seu quê de hilariante, quando a menina pergunta ao lobo mau por que é que tem olhos, nariz, orelhas e boca tão grandes. Questionado acerca do nariz, o Canis lúpus responde: para te cheirar melhor. Até há pouco tempo julgava-se que o cão da raça Santo Humberto – o cão é de caça e o santo que lhe dá o nome é o padroeiro dos caçadores – conseguia distinguir 300 milhões de odores. O ser humano ficaria por uns meros cinco milhões.

Um estudo, publicado este ano pela revista Nature, desmente os números. Não desmente, arrasa. Na verdade, segundo o trabalho científico realizado pelos investigadores olfativos Andreas Keller, da Rockefeller University, e Donald Wilson, da New York University School of Medicine, o ser humano é capaz de identificar um bilião de odores. Os cientistas prepararam centenas de misturas com um máximo de 30 componentes, selecionados a partir de 128 moléculas odoríferas. Os testes foram realizados com 26 participantes, que tiveram de decifrar diferenças. Quando dois perfumes continham mais do que 51% de com ponentes comuns, a maioria conseguiu detetar as similitudes.

Assim, estimam que os seres humanos possam detetar o tal bilião. O estudo não avaliou o alcance da perceção nem o comparou com outros mamíferos, mas prevê-se que os cães e os lobos consigam percecionar mais odores a maior distância. O tema dos aromas do vinho não é uma bizarria nova. Já no século I antes de Cristo, o filósofo e epicurista romano Lucrécio falava dos odores e da sua ligação ao que hoje podemos chamar moléculas. Um outro estudo, realizado por Linda B. Buck e Richard Axel (vencedores do Prémio Nobel da Química em 2004), confirmou as afirmações deste pensador romano. Juntaram moléculas odoríferas e proteínas recetoras específicas. Cada molécula recetora reconhece apenas uma característica odorífera. Tal como o lobo mau, temos visão e audição para decidir que ação tomar. Temos olfato e paladar para indicar se é comestível, estragado ou tóxico. Olfato e paladar andam de tal modo juntos, que o perfume do caldo verde nos põe com apetite para comer esta sopa.

A memória pode inventar e iludir, ainda que inadvertidamente. Quem nunca cheirou baunilha, hortelã ou urina de gato distinguirá esses cheiros? Se só conhecermos aromas sintetizados, da baunilha das bolachas ou do morango das pastilhas elásticas, não sabemos os originais. Ao depararmo-nos pela primeira vez com um odor podemos avaliá-lo mal e garantir que o conhecemos. 

NARIZES E NEURÓNIOS

A experiência cria memória e depois há os génios. António Porto Soares Franco, enólogo e um dos proprietários da José Maria da Fonseca, tinha um nariz de eleição, conseguindo reconhecer vinhos às cegas, alguns provados há dezenas de anos. Quem anda no mundo dos vinhos sabe que há provadores – dos mais treinados aos novatos – que detetam dois ou três aromas, ou dezenas. Pode ser falta de experiência ou de capacidade de alguns ou de excelência e cultura de outros, ou ainda de parosmia (sensação de sentir cheiros que não existem) ou hiperosmia (transtorno que supõe um aumento exagerado da sensibilidade), ou a junção das duas, a fantosmia.

A fanfarronice não está excluída. Contou-me um amigo que, numa prova com um professor, um dos presentes reconheceu um odor a cabra! Não duma cabra qualquer, mas duma cabra dos Andes. Mordaz, o académico perguntou-lhe: “Mas do lado de cá dos Andes ou do lado de lá?” “Existem cerca de 30 famílias de aromas no universo aromático. Tenho visto profissionais que reconhecem cerca de 50 em minutos”, afirma Veronica Bustos, que trabalha em perfumaria e formação, realça o “treino rigoroso” dos perfumistas. “É claro que, através da prática constante, pode adquirir-se um conhecimento perfeito de descritores aromáticos.

É impressionante ver degustações de vinhos de profissionais e de amadores que nunca tenham recebido educação olfativa. Os melhores músicos passam anos a estudar teoria musical e a praticar quotidianamente escalas. Por que deveria ser diferente para os profissionais e amantes do vinho?” Em matéria de sensibilidade, os perfumistas dão dez a um aos enólogos. Um enólogo meu conhecido falou-me duma formação com um “nariz”, com muitos recipientes e amostras imprecisas ou não identificadas. Num conjunto de mentolados, o que um cheirador percecionava podia não ser reconhecido pelo colega. Parece que não há um mentol, como nem todas as cabras têm o mesmo cheiro. É aqui que as provas se tornam difíceis. Tal como há a roda dos alimentos, que se aprende na escola, também há uma roda de aromas vínicos. Dividem-se em vários níveis: os primários, retirados da fruta; os secundários, da intervenção humana; e os terciários, as rugas da idade. Há famílias: fruta, especiarias, florais, microbiológicos, oxidação, acre, químicos, terra, madeira, caramelo, frutos secos e vegetais. Cada com subcategorias e sub-subcategorias. Falar bem e bonito, para impressionar uma audiência, não é difícil. Para definir aromaticamente o vinho há uns jargões muito úteis. Funcionam como as triplas no Totobola, que neste jogo se podem pôr em todas as partidas.

Vejamos: “Este vinho tem um aroma a flores brancas, notas de especiarias e de frutos vermelhos.” Pode não parecer, mas este cheirador jogou uma tripla. Flores brancas? Laranjeira, jasmim, jarro, margaridas? Especiarias? Noz-moscada, canela, pimenta, cravinho? Frutos vermelhos? Morangos, cerejas, dióspiros, tomate?

OS LUGARES E OS MOMENTOS

Um dia, numa masterclass, meti a audiência a gargalhar com um descritor. Falou-se em florais e disse: “Lembra-me uma floreira que há em Óbidos.” É a memória e a minha incapacidade em distinguir todos os elementos do ramalhete daquele vinho. Veronica Bustos sublinha que temos guardadas imagens de plantas, frutas, especiarias, mas não necessariamente os seus odores; o entendimento e o sentir são pessoais. “A perceção é a interpretação mental da sensação. Pessoas apaixonadas têm mais facilidade em reconhecer diferentes aromas. Desenvolver o olfato é uma arte e é necessário treino adequado.

Um vinho pode ser bom para uma pessoa, porque lhe lembra um momento agradável e, para outra, não significar nada ou é sentido doutra forma.” Para que “serve” o cheiro no vinho? Responde José Bento dos Santos, produtor dos vinhos Quinta do Monte d’Oiro e vice-presidente da Academia Internacional de Gastronomia: “Os aromas fazem parte da essência do vinho, das suas características e personalidade, identificam-se e distinguem-se. Se por um lado têm essa importância, a tentativa obsessiva da sua identificação não é, nem pode ser, um fim em vista. É importante para todos os amantes de vinho terem uma noção do que são os aromas primários, secundários e terciários, o seu significado e a sua participação no conjunto com os sabores, na constituição do fenómeno do, maior ou menor, prazer em beber este ou aquele vinho.”

E acrescenta: “Mas daí a pensar-se que a sua identificação exaustiva contribui para esse prazer é uma ratoeira, onde caem muitos incautos, que confundem esse conjunto maravilhoso e uníssono de aroma e sabores de um vinho, que nos pode causar uma enorme satisfação ao bebê-lo, com a exibição de uma sabedoria analítica, sem qualquer valor para ajudar nesse mesmo prazer degustativo. Seria como se para apreciar uma sinfonia de Beethoven fosse imperativo e necessário conhecer em detalhe os modos, as notas e os tempos da partitura.” João Pedro Araújo, produtor nas regiões do Vinho Verde (Quinta de Sanjoanne) e do Dão (Quinta da Vegia), destaca que o aroma permite reconhecer a qualidade da fruta e, por conseguinte, a felicidade da vindima.

Porém, este vitivinicultor considera ser “perigoso enumerar aromas, pois cada consumidor encontra os seus em cada vinho”. Diz ser importante o enófilo reconhecer os aromas, nomeadamente, os de vinhos com mais idade, “um sinónimo de conhecimento do consumidor e maior capacidade de saber escolher a qualidade”. Aparentemente, os portugueses têm uma relação dúbia com o vinho. Provavelmente, a grande maioria gosta, embora possa não o beber diariamente ou semanalmente. A relação dúbia comprova-se no valor médio das escolhas. Há dados que indicam que 90% do vinho vendido em Portugal custa menos de €5. No intervalo de €0.01 a €4.99, 80% ficam abaixo dos três euros. Um café custa €0.60 e um refrigerante vale €1.50 – o valor apurado, pela Revista de Vinhos, como média nos supermercados. Esses 90% têm em conta os aromas descritos no contrarrótulo ou por um crítico quando compram vinho? “O cliente gosta de saber se o vinho é leve, encorpado, seco ou doce, ácido, áspero ou suave, etc. Não se preocupa muito com a descrição de aromas no nariz”, sentencia João Pires, o único cidadão ibérico no restrito grupo dos master sommeliers.

Fora do universo dos 90%, é importante a descrição dos aromas? “É possível, se o exercício de descrição aromática não for um jogo de vaidade pessoal, mas antes a tentativa de sugerir qual o perfil aromático: fresco, maduro, floral, mineral, com mais ou menos madeira, etc. Isso pode ajudar as escolhas, tanto na compra como depois na escolha das ligações gastronómicas”, adianta Luís Antunes, crítico da Revista de Vinhos. João Pires tem experiência com gastrónomos dispostos a pagar por uma refeição o mesmo que a soma de alguns salários mínimos portugueses. “Sim, existem consumidores que preferem vinhos frutados e não gostam de vinhos florais ou com especiarias.

Mas não constituem a maioria e depende obviamente do mercado. No caso da Inglaterra pode tornar-se mais exigente, pois é um mercado maduro em termos de consumo e conhecimento”, esclarece o escanção do restaurante londrino Dinner by Heston, com duas estrelas Michelin. “O crítico faz o papel pedagógico de enfatizar que beber um vinho sem o cheirar é ignorar mais de metade do que ele oferece. Nos cursos que dou recomendo o exercício de exalar lentamente pelo nariz com a boca fechada e depois de engolir. É uma forma de focar a atenção no chamado aroma interno, tão importante como o externo, e juntos formam uma parte importante do sabor”, adianta Luís Antunes. Óscar Gato tem, por força da dimensão da empresa em que exerce enologia, uma grande paleta de aromas. A Adega de Borba processa nove castas brancas e uma dezena de tintas. “O consumidor mais esclarecido procura sensações diferentes. Acredito que tem curiosidade em perceber algumas diferenças aromático-gustativas, nomeadamente a diferença ou semelhança entre castas. Talvez possa comprar vinho utilizando o critério frutado ou floral, ou outro de que ouviu falar.”

A APOSTA NUM AROMA

Os aromas que mais facilmente agradam são os doces, veja-se a alegria gastronómica dos bebés. A fruta vem à cabeça e a sedução seguinte pode ser a floral, que inspira momentos agradáveis. Cada casta tem as suas características - a Touriga Nacional, que tem berço no Dão, oferece violetas. Na região têm surgido vinhos monovarietais com grande expressividade das violetas.

“Cada casta tem o seu ADN aromático e o consumidor gosta e identifica as características. Escolhe um Shiraz australiano, porque gosta de especiarias e chocolate, ou um Chardonnay californiano, porque gosta de baunilha, caramelo e frutos tropicais, ou um Sauvignon da Nova Zelândia, porque gosta de aromas herbáceos. Não me parece errado associar a casta a um determinado perfil aromático”, diz João Pires. Óscar Gato acrescenta: “Encontramos os descritores do vinho permanentemente à mesa, nos alimentos, numa refeição, nas entradas, no prato e na sobremesa. Esta harmonia faz sentido se houver interligação vinho/gastronomia.

É verdade que o vinho vai envelhecendo, vai evoluindo. Por isso, a escrita descritiva, das sensações aromático gustativas, deverá alertar o consumidor para o que pode encontrar ao abrir a garrafa.” O enumerar de descritores tem vantagens ou é redutor? Responde o master sommelier: “Do ponto de vista do consumidor, fundamentalmente do consumidor de prateleira, penso ser vantajoso. É evidente que a qualidade do vinho vai bem mais longe, é muito mais complexo do que apenas enumerar aromas. Se comprar vinhos diferentes, aqui no Reino Unido, numa grande superfície, a £4.99 [€6.30], garanto-lhe que cheiram e sabem todos praticamente ao mesmo.”

O tempo muda tudo. “É claro que, dez anos depois de o vinho ser engarrafado, a descrição terá que ser reformulada. Encontramos normalmente grandes diferenças descritivas entre vinhos de anos de colheita recentes e de colheitas mais velhas”, explica Óscar Gato. João Pires conta que, por vezes, os comensais recusam um vinho, por falta de conhecimento das características da antiguidade. “Os vinhos com alguma idade não são vinhos fáceis, do ponto de vista do consumidor menos esclarecido, o que faz sentido. O mercado inglês gosta de vinhos menos jovens. O francês já funcionou assim, hoje tende a consumir mais jovens e frescos. Portugal também prefere vinhos jovens. Um vinho com alguma idade nem sempre é fácil de compreender e pode ser caro, pelo que faz sentido alguma resistência por parte do consumidor.”

Há também criaturas estranhas! A levedura Brettanomyces é responsável por aromas que lembram, entre outras coisas, bacon, cabedal vindo de Marrocos ou estrebaria (fezes com palha). A sua presença pode indiciar falta de higiene no fabrico. Um enólogo conhecido disse-me: “O que é defeito em todo o mundo, em França é carácter.” É verdade que esta levedura gosta de vinho francês e que há gente que aplaude o relinchar dos cavalinhos dentro do copo. Se o cliente tem sempre razão, que se albarde o burro à vontade do freguês: produtores norte-americanos injetam Brettanomyces nos vinhos. Ou seja, estragam-no e ganham negócio. O cheiro inconfundível do dinheiro...