Caminhos Reais

Antes das estradas, as ligações por terra entre as várias localidades da Madeira eram feitas pelos Caminhos Reais.

 
 
A vereda dos Zimbreiros, na Fajã da Ovelha, concelho da Calheta, é banhada por um colorido pôr-do-sol. Lá em baixo, o mar é testemunha de que estamos a várias centenas de metros de altitude, num pedaço de caminho rasgado na encosta. Esta vereda faz parte dos Caminhos Reais. Não são levadas, mas atravessam levadas. Não eram percursos apenas pedestres, porém eram percorridos maioritariamente a pé. Estes são os Caminhos Reais.
 
Este trilho com cerca de 92 quilómetros é abraçado por vegetação, que com a vista reforçam a grandeza deste lugar. Lá em baixo estão o Jardim e o Paúl do Mar e este troço do Caminho Real era o ponto de passagem de um circuito de trocas comerciais entre os produtos da faina e da safra.
 
Os “caminhos ou estradas reais” exemplificam a dificuldade que a orografia da Madeira representou ao longo dos séculos e são o exemplo do quão árduo foivencer as ilhas dentro da ilha.

Esta rede atravessa a Madeira em várias direções. O Caminho Real 23, que dava a volta a ilha, ligando as localidades do litoral, era o principal. Mas há outros. Foram construídos por ordem dos governadores e capitães-generais da Madeira ao longo dos tempos. A designação “reais” é por terem sido construídos antes da implantação da República, em 1910. Era uma alternativa ao mar, a principal forma de ligação entre as localidades, até ao século XX.

Embora não haja conhecimento de quantos caminhos existiram, calcula-se que a mais antiga rede de circulação da ilha possua uma extensão de 400 quilómetros, muitos deles perdidos ou escondidos entre a vegetação, bem como pela difícil orografia das ilhas.

Com a chegada do automóvel e uma rede viária moderna no século XX, estes “caminhos reais” progressivamente perderam importância. Atualmente, dos 28 percursos pedonais recomendados pelas autoridades, 25 na Madeira e três no Porto Santo, apenas 12 são em veredas e antigas “estradas reais”.

A grande maioria dos percursos do Caminho Real 23 ainda tem o seu formato original, preservando assim o enorme património histórico e cultural da identidade insular dos madeirenses. Nesse sentido, as entidades regionais têm vindo a apostar no potencial económico, bem como na valorização do património destes Caminhos.

A Câmara Municipal da Calheta, por exemplo, investiu cerca de 200 mil euros, em parceria com o Governo Regional, com o objetivo de potencializar o Caminho Real da Calheta por meio do já recuperado troço entre o Lombo do Autoguia, na freguesia da Calheta e o sítio do Somagre, freguesia do Arco da Calheta, o qual tem uma extensão de 500 metros.

Outros dois troços estão agora em fase de projeto para recuperação, nomeadamente aquele que liga o Lombo do Salão ao Lombo Doutor na freguesia da Calheta, com aproximadamente 1.500 metros e um de cerca de 2.550 metros entre o sítio do Lombo Coelho, na freguesia dos Prazeres e o sítio de São Lourenço na Fajã da Ovelha.

Ambos os projetos, no total, e com contrato-programa com o Governo Regional, têm uma estimativa de investimento de 1 milhão, 750 mil e 250 euros.

A divulgação dos Caminhos Reais tem sido um projeto a que Miguel Silva Gouveia tem dedicado parte da sua vida. O que começou por ser uma descoberta culminou com a criação, em 2017, da Associação do Caminho Real da Madeira, cujo objetivo é divulgar e proteger este património.

O Caminho Real 23, o maior, abrange dez dos onze concelhos da ilha e 37 freguesias e, explica Miguel Silva Gouveia, “acaba por mostrar, a quem o percorre, um pouco de toda a vivência da Madeira e a sua identidade”, num total de 181 quilómetros.

Os caminhos reais também se confundem com as povoações por onde passa, seja na costa sul ou na costa norte. Na Ribeira Funda, freguesia do Seixal, por exemplo, a vegetação da encosta penteada pelo vento, as poucas casas, os motivos religiosos e os fontanários acompanham o trajeto.

Esta pequena povoação, enfiada pela montanha, fica situada entre as freguesias do Seixal e Porto Moniz. O acesso é limitado, mas pode ser feito pela antiga Estrada Regional 101 ou por uma das saídas de emergência do túnel da Fajã das Contreiras.

Até 2006, quando a estrada foi inaugurada, as oito pessoas que lá vivem iam para suas casas por meio de uma vereda com 787 degraus. Naquela localidade, onde não chegam autocarros e a agricultura é uma das atividades principais, predomina a pacatez.

A caminhada levada a cabo pela Essential continua pela Ribeira da Janela. À chegada, no adro está situada a Igreja de Nossa Senhora da Encarnação. Também aí ninguém fica indiferente à estátua da Mãe Cristininha a acenar da sua varanda. A senhora que passava os seus dias a bordar, a ler e a cumprimentar quem por ali passava foi homenageada por um dos filhos pródigos desta terra, Antonino de Ponte, e seus irmãos.

É aqui que nos reencontramos com o Caminho Real 23. Subindo um pouco a faixa de degraus, ou o chão plano, há tempo para provar uma macia na venda que é de Maria Jardim há 35 anos. O espaço comercial onde “passam uns turistas e compram gelados” vende um pouco de tudo, desde arroz, massa, açúcar, café, vinho e frutas.

Até chegar à etapa seguinte, a Vereda da Tranquada, ainda pertencente à Ribeira da Janela, são notórios os indícios da presença humana não só pelas casas, mas também pelo lavadouro público onde antigamente a roupa era lavada.

O aroma a eucalipto, a presença de tis e barbuzano enchem o ar e o olhar. O ambiente sereno e o ar puro que pairam à medida que o percurso é feito convidam a prestar atenção à fauna e flora ali existentes. Exemplo disso mesmo é a existência de um viveiro de madre-louro, um fungo que vive como parasita do Loureiro e que é utilizado na medicina popular madeirense.

Com o espírito reforçado pela travessia daquela floresta mágica, continua o plano de descer até à Ribeira da Janela que ganhou o seu nome pelo ilhéu em frente à foz, cujo curso de água é o mais extenso e abundante da Madeira. As casas rodeadas pelos campos agrícolas, as paredes em pedra e a passada animal designada por “passo do boi” são o ecoar de outros tempos.

Um dos projetos da Associação do Caminho Real foi a criação de selos que podem ser acrescentados a uma caderneta, que custa dois euros e cuja receita serve para ajudar a associação, à medida que os diferentes trajetos são percorridos. Nas Achadas da Cruz, a freguesia que faz a transição entre as costas sul e norte da Madeira, o Sr. António é o guardião do selo na Mercearia Bar Central.

Por toda a ilha é assim: Parques dos caminhos reais confundem-se com percursos atuais e locais onde vivem pessoas, e partes de floresta quase intocada e vistas inesquecíveis. Entre escadas íngremes, curvas sinuosas, e um silêncio quase absoluto é isto o Caminho Real: Percorrer a Madeira no que a ilha tem de mais genuíno.