O templo do surf

O misticismo à volta do surf tornou o Jardim do Mar num motivo de peregrinação para os amantes das ondas.

 

A pequena freguesia do Jardim do Mar, no concelho da Calheta, entre as pequenas casas e os terrenos dedicados à agricultura, é dotada de uma beleza rudimentar.

A encosta despida de vegetação impõe o respeito congénito da natureza no seu estado mais puro. No entanto, é a força das ondas, que podem atingir os 15 metros de altura, que coloca residentes e visitantes em sentido.

É essa energia vinda do oceano Atlântico que faz do Jardim do Mar um dos locais mais aclamados da Europa para a prática do surf, ao ponto de ser considerado quase como uma espécie de templo da modalidade.

E há mesmo quem faça do Jardim do Mar casa, pelo menos durante uma parte do ano, de modo a aproveitar a serenidade que o mar robusto tem para oferecer. É o caso de Mickael Hanchana, ou simplesmente Chino, como gosta de ser chamado.

Chino alia o trabalho sazonal às suas paixões e viaja de acordo com as estações do ano à procura dos melhores locais para a prática da escalada, do snowboard, da descida de bicicleta e, claro, do surf. No Jardim do Mar encontrou o local indicado para o domínio das ondas.

Ali, "aprende-se muito sobre nós próprios e é isso que torna este lugar tão especial para mim", explica o francês, natural de Montpellier.

A primeira vez que ouviu falar da Madeira como um local para surfar foi durante uma viagem às Filipinas, decorria o ano de 2018. Foram dois jovens madeirenses, também eles aficionados pelo surf, que lhe desvendaram este pequeno segredo no meio do Atlântico.

A segunda chegou-lhe no ano seguinte, ao virar as páginas do livro "Barbarian Days: Surfing life", de William Finnegan. Encontrava-se no Panamá, a trabalhar como guia de surf na costa do Pacífico, e procurava uma nova aventura.

No livro do jornalista do New Yorker, Chino leu sobre as "condições intensas e cativantes para surfar, com enormes ondas durante o inverno". Convencido, decidiu contactar os jovens que havia conhecido nas Filipinas. Em outubro de 2019 já deslizava pelo mar do Jardim.

Quis o destino que a chegada ao templo do surf da Madeira coincidisse com as celebrações religiosas em honra da Nossa Senhora do Rosário, um dos momentos mais importantes no calendário anual dos pouco mais de 200 habitantes daquela pequena freguesia.

"O Jardim do Mar estava magnífico. Iluminações por todo o lado e as ruas cheias de flores e mosaicos. Senti uma energia poderosa e ao mesmo tempo tranquilizadora", recorda o francês.

Acabou por ficar pouco tempo. Um ano depois da primeira estadia, Chino voltou para perto da "família" do Jardim do Mar. E por lá ficou, pelo menos por enquanto.  É que ali a época alta do surf decorre entre o final do verão e o início da primavera.

Na década de 90, altura em que o surf voltou em força a este recanto da Calheta, depois de um início tímido nos anos 70, era habitual a estadia de longa duração por parte de australianos, norte-americanos e neozelandeses.

Orlando Pereira, natural do Jardim do Mar e um dos impulsionadores da modalidade na Madeira, explica estas estadias longas: "Com uma viagem tão longa, era normal quererem ficar mais tempo para aproveitar". Por conta disto, depressa o surf passou a ser vivido também pela comunidade.

"Nessa altura, as pessoas alugavam quartos nas suas casas a quem queria aproveitar a época alta e ficar durante os meses de inverno", explica Orlando Pereira. Hoje em dia existe uma variada oferta de alojamento.

Nos dias em que as ondas teimavam em não aparecer, os residentes sazonais ajudavam a comunidade local em trabalhos relacionados com a agricultura, promovendo uma simbiose perfeita.

Com o passar dos anos, a duração da estadia dos visitantes foi diminuindo, mas a situação voltou a mudar. "Assistimos a um aumento do número de pessoas, que se encontram em regime de teletrabalho, que escolheram o Jardim do Mar para passar uma longa temporada", refere Orlando Pereira. Em comum, partilham a procura da onda perfeita e a vontade de superar o desafio que é surfar ali.

A onda do Jardim do Mar não é para principiantes. Trata-se de uma onda direita – uma onda que quebra para o lado direito –, massuda e de nível intermédio. Num bom dia, as vagas podem atingir alturas entre os dez e os 15 metros.

No entanto, estas particularidades não impedem que os crentes do surf enfrentem o mar nesta altura do ano. Chino é um deles. O francês descreve a experiência do surf no Jardim do Mar como algo de poderoso e intenso e lembra que é preciso respeitar religiosamente o oceano; caso contrário é ele quem nos recorda da sua força.

É com este misticismo que o surf é visto no Jardim do Mar, sempre com uma relação muito próxima entre quem visita e quem dali faz casa. Naquele templo, Chino redescobriu o espírito familiar dos seus antecessores da década de 90 e desfruta do pôr-do-sol, da paz e do sossego que ali reina. E, claro, do omnipresente oceano.